Penélope é um destes personagens incríveis da mitologia grega que habita o nosso imaginário. Enquanto espera, ela tece e destece um tapete. Com o fio na mão e o seu tear, um tapete de escolhas é tramado, em que a linha mestra do seu amor é a sustentação de sua trama, ao mesmo tempo em que a fortalece para desmanchar tudo durante a noite, pois não é o tapete em si que está em jogo, e sim brincar com o fio da vida no tecer e destecer, resignificando a espera, escolhendo-a criativamente.
A fascinante Penélope sempre me inquietou com suas escolhas e seu poder de arquitetar com a trama do seu tapete, o amor. Ela faz parte de uma constelação de personagens das literaturas que estão ligados às artes têxteis, figuras, que assim como ela, são tecelões, fiandeiros, alfaiates e costureiros. São pessoas, fadas, seres extraordinários ou mesmo animais que exercem (ou pelo menos dizem) essas atividades, e a estrutura do seu caráter perpassa por seus espíritos criativos e mãos habilidosas (ou não), onde o nó da ação pode ser desatado, ou pelo contrário, pode ser mais apertado por estas intrigantes figuras.
Como integrante d’Os Tapetes Contadores de Histórias, lidar com a arte têxtil e asliteraturas me abriu a possibilidade de investigar parte deste universo tão vasto e infinito. O meu grupo, atualmente composto por Andrea Pinheiro, Edison Mego, Rosana Reátegui, Warley Goulart e eu, há 18 anos desenvolve espetáculos, sessões de histórias, exposições interativas, instalações e oficinas que possuem como eixo criativo as relações entre oralidade, literatura, arte têxtil, teatro e formas animadas. Criamos objetos de tecido, de tamanhos variados, com costura e bordado, que podem ser tapetes, aventais, malas, caixas, livros, painéis que servem de cenários para narrativas ou objetos utilizados numa instalação, como uma grande árvore de tecido, um galgo, uma tenda…. Estar com meus parceiros de trabalho ao longo desses anos nas criações, pensando e se repensando enquanto artistas e criadores, é como ser um pouco esta Penélope, que tece e destece, só que no nosso caso a espera se torna maturação, escolha, criação e reinvenção da própria linguagem, se desconstruindo no nosso fazer, entrelaçando arte e vida no mesmo tapete. A jornada da reinvenção não se dá sozinho, se estabelece pelo encontro com novos e/ou velhos artistas parceiros e colaboradores.
Começamos como grupo a partir do encontro com o projeto desenvolvido na França chamado Raconte Tapis em 1998. Inspirados por Tarak Hammam (um dos mentores do projeto francês que o concebeu junto com sua mãe Clotilde Hammam) seguimos aqui no Brasil, e nos primeiros anos, bem ao estilo de como faziam em terras francesas. Mas nossos contextos latino-americanos provocaram mudanças e nos inquietaram, nos abrindo novas possibilidades para que estivéssemos em consonância e proximidade com as nossas identidades e realidades. E fomos assim, como grupo, mergulhar neste universo sobre a narração de histórias que entremeada pela arte têxtil, que nos deparamos com pesquisas, textos, investigações (por exemplo de Ana Maria Machado e Marie Louise Von Franz) que tecem profundas relações entre essas duas linguagens. É com Ana Maria Machado que nos deparamos com o jogo de origem semântico, onde a palavra texto tem a mesma raiz da palavra têxtil. Há outras palavras da arte da narrativa que também fazem parte da arte têxtil: trama, enredo, fio da história, ponto, novelo e novela… Arrematados por esse estreito entrelaçamento, e igualmente tocados pela força simbólica dessas figuras do ofício da arte têxtil, que possuem dons de moldar e revelar personas (como os costureiros e alfaiates), ou de se empoderar do fio do destino como as Moiras, potencializamos isso para nós mesmos como grupo e artistas narrativos e têxteis.
A partir disso, vem nos interessando ao longo desse caminhar e eterno tecer, nos perguntar sempre sobre cada proposta ou projeto que criamos, “O que esta história nos pede como objeto para ser contada?”, “Que imagens e sentidos nos movem, comovem e tocam e que podem ganhar materialidade no tecido?”. Na tentativa de responder a estas perguntas, criamos. Falo tentativa porque as respostas não são certeiras, são aproximações, e a criação, uma vez materializada, traz novos problemas e seguimos respondendo. Vemos que há um mar de possibilidades, um novelo sem fim. E claro, há também o trabalho de conferir frescor às histórias e materiais que fazem parte do nosso repertório, renovando e descobrindo novos sentidos.
Assim como uma personagem do conto Moça Tecelã, uma espécie de Penélope contemporânea da escritora Marina Colasanti, que tinha um tear mágico para tecer tudo para sua vida, desde o sol de sua manhã, o copo de leite, até um marido, termino a minha escrita “Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-as devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.”
About the Storyteller: Cadu Cinelli is the co founder, an art director, storyteller and visual artist with the group Os Tapetes Contadores de Histórias (The Carpet Storytellers). With his group Cadu, has performed, taught and presented exhibitions in Brazil, Argentina, Bolivia, Paraguai, Peru, Nicaragua, Mexico, Benin, Portugal and Spain.